Uma overdose de Saramago para enxergar melhor o mundo

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“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”

É com essa frase que se inicia uma das obras mais impactantes de José Saramago. Lembrei dela quando estava pensando no post de hoje. Daí, foi inevitável que escolhesse o autor para ser o tema do texto dessa sexta-feira.

O escritor português é um dos mais importantes dos últimos dois séculos não apenas pelo estilo de contar histórias (a elipse das interrogações, as frases despontuadas ou a narração que se confunde com a fala dos personagens), mas também pelos temas que abordou.

Sua escrita funcionou bem ao contar fatos muito bem inventados dentro de romances históricos. São os casos, por exemplo, de “Levantado do Chão” (1982), “História do Cerco a Lisboa” e “Memorial do Convento” (1984), livros que misturam fatos reais com personagens inventados. Em “Memorial”, por exemplo, ele envolve situações em que o rei D. João V e Bartolomeu de Gusmão se encaixam com o caminho da misteriosa Blimunda e o operário Baltazar.

Memorial do Convento
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Também é possível citar a pesquisa minuciosa que ele fez em “O ano da morte de Ricardo Reis” sobre o salazarismo e a viagem existencial provocada na Península Ibérica daquela época através da visão do heterônimo de Fernando Pessoa, além de ver as transformações disso tudo em outra obra brilhante, “A Jangada de Pedra”, na qual busca uma explicação para a identidade do povo europeu.

Saramago provocou, arriscou, mas seduziu com seus livros de poemas: Podemos citar o primeiro nessa linhagem, “Os poemas Possíveis”, o não tão bem conceituado “O Ano de 1993” e o ótimo “Provavelmente Alegria”.

Mas há algumas pérolas dos contos, das crônicas, das divagações e das histórias mais complexas que foram escritas pelo português, nascido em Azinhaga, em 1922, que ficarão para sempre na memória literária mundial.

A lista é grande, mas a sua série de ensaios e diários como “Ensaio sobre a Cegueira”, “Ensaio sobre a Lucidez” e “Cadernos de Lanzarote” não podem passar incólumes pela vida de qualquer viciado em literatura, assim como a discussão filosófica e teológica de outros livros como “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, “As Intermitências da Morte” e “Caim” não deve faltar na prateleira de qualquer ser desconfiado com a religião.

“O Evangelho Segundo Jesus Cristo”
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Há inúmeros outros escritos de Saramago dignos de promover variados sentimentos no leitor, tais como: “O Conto da Ilha Desconhecida” em que debate a imaginação e a burocracia; “O Homem Duplicado” com a maluca história do diretor que descobre um sósia seu atuando no próprio filme dirigido por ele; “A Caverna”, um encontro entre “Admirável Mundo Novo” Aldoux Huxley e a parábola de Platão; além de “In Nomini Dei”, A Segunda Vida Francisco de Assis” e “Poética dos Cinco Sentidos”, todos com algum tipo de questionamento filosófico ou alguma discussão transcendental que vão lhe fazer pensar durante dias sobre as respostas (que nunca são dadas pelo escritor).

A Caverna
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José Saramago é um daqueles escritores que teve poucos momentos de falta de inspiração em sua carreira e mesmo quando colhemos informações sobre livros que parecem não estar à altura de sua bibliografia (como é caso do já citado “O Ano de 1993”) há a possibilidade de visualizar elementos que fascinam o leitor.

A percepção de Saramago, que era ateu, sobre a vida é aquela que deve ser meta de qualquer um: viva bem e não se importe com o que acontece depois. Daí o fato de suas maiores divagações serem a respeito de crises que acontecem conosco aqui mesmo na Terra, onde vivemos nossos sofrimentos e buscamos nossos momentos de alegria.

Mesmo num conto que poderia parecer sobre o que vem depois da vida, como “As intermitências da Morte”, o autor promove uma análise do problema da “greve da morte” para a nossa humanidade.

Por fim, a obra de Saramago não nos fornece soluções simples para os problemas em que se envolvem seus personagens, aliás ele nem sempre nomeia essas pessoas já que o que importa é que eles são, o que eles podem realizar e o que eles fazem acontecer. Por outro lado, ele está falando sobre “Eles” ou “Nós”?

Essa é uma pergunta que Saramago não responde, mas que pode ser interpretada como uma infinita forma de mostrar nosso âmago através daqueles que enojamos na farsa da literatura. É engraçado perceber, às vezes, que personagens com absurdos defeitos são muito parecidos com aqueles de carne e osso ao nosso lado (ou até nós mesmos).

Assim como Sócrates, o filósofo, apreciava mais o jogo entre as perguntas e as respostas, fazendo-nos pensar a respeito do que foi resolvido com essa dúvida, Saramago nos deixa sempre acabrunhados com as ações em suas obras e o sentimento é sempre de perplexidade com a lacuna que fica ao término das imagens produzidas pelas nossas próprias mentes após a leitura de suas histórias. Será que a vida não pode ser mais simples do que nós fazemos ela ser? Saramago não nos ensina isso de forma simples, propositadamente para que saibamos degustar aos poucos e refletir sobre os problemas da humanidade.