No início de tudo, era o nada. Como a curiosidade sempre leva à pergunta as pessoas se sentem na obrigação de responder a ela. Portanto, alguém resolveu contar a origem de tudo. E assim nasceu a tentativa do homem de explicar a origem do Universo. As civilizações mais antigas já tinham essa questão existencial. E as religiões, preocupadas em dar respostas a seus fiéis, não poderiam deixar de formular suas respostas.
“Como surgiu tudo? Como é a origem do planeta, das coisas, do homem? Essas são as primeiras perguntas que o homem faz a si mesmo. Sejam indígenas, africanas, orientais, grandes ou pequenas, novas ou antigas, todas as religiões terão respostas para isso”, diz o teólogo da PUC-SP, Rafael Rodrigues, especialista no Antigo Testamento, que cita o começo do livro Gênese para exemplificar sobre a questão.
As pessoas responsáveis pela sustentação das religiões utilizaram os mitos, a elaboração de lendas e de exemplos de vida para citar o início de tudo, mas também se estabeleceu-se daí uma doutrinação para toda a comunidade que vivia sob sua tutela.
Na falta de referências, os homens costumam usar como matéria-prima dos mitos o mundo real para responder essas perguntas transcendentais. Por isso, a cosmologia de cada grupo social é um reflexo da cultura e do momento histórico de quem a inventa. “Os mitos colocam o que é mais importante na cultura local com uma importância proporcional nos mitos de criação”, diz Rodrigues. Logo o sol e a água, essenciais para a produção agrícola e a sobrevivência, sempre ocuparam lugar de destaque na mitologia das civilizações antigas.
Muitas histórias sobre a origem do mundo começam contando como esses recursos foram criados ou controlados pelo homem.
O conhecimento sobre as civilizações antigas fez com que o homem moderno se apoderasse dessas informações e recriasse, muitos desses mitos de acordo com sua necessidade doutrinária.
Alguns exemplos da mitologia mundial nos proporciona um mergulho ao momento histórico em que aquela história foi inventada. Não há como negar que a estrutura social, o envolvimento com as guerras e a falta de visão de mundo das pessoas contribuíram para uma série de fatos narrados em cada uma das épocas em que os mitos de iniciação da humanidade foram construídos.
Segundo a mitologia iorubá, por exemplo, no início dos tempos havia dois mundos: Orum, espaço sagrado dos orixás, e Aiyê, que seria dos homens, feito apenas de caos e água. Por ordem de Olorum, o deus supremo, o orixá Oduduá veio à Terra trazendo uma cabaça com ingredientes especiais, entre eles a terra escura que jogaria sobre o oceano para garantir morada e sustento aos homens. Para a tradição religiosa chinesa, o caos inicial era como um ovo no qual entraram em equilíbrio os princípios opostos, yin e yang. Desse equilíbrio nasceu Pangu, gigante de cujo corpo se formou a água, a terra e o Sol.
Representação de Oxalá
Veja que os elementos da natureza são usados de maneira a dar uma visualização fantástica, mistica. Porém, além dessa necessidade de explicar a criação das coisas, dos animais, das plantas, do céu e da terra, e do homem, há outros interesses nesses contos sobre a origem de tudo.
Às vezes, os mitos de criação são verdadeiros tratados políticos de sua época. “Só compreendemos o 1º capítulo do Gênese se entendemos a catástrofe dos povos que o escreveram”, diz Rodrigues. A cosmologia judaico-cristã foi escrita por povos dos antigos territórios de Israel e Judá, levados à força para a Babilônia, onde pagavam tributos. “Quando dizem que ‘antes a terra estava vazia e sem forma’, eles não se referem ao planeta, mas ao território deles, que ficou devastado e abandonado após a invasão dos povos assírios.” A ordem de criação das coisas no mito é uma provocação ao poder local. A primeira frase dop Gênese diz que Deus fez a luz. Só no 4º dia Ele criaria o Sol, contrariando a cosmologia dos opressores babilônios, para quem Marduk, o Sol, era o deus supremo e criador de todas as coisas, inclusive da luz.
Dessa forma, estamos tratando de um atrito político, no qual a maior detenção do conhecimento garante o poder sobre as massas.
Ainda contando a tragédia dos povos de Israel e Judá, os capítulos 2 e 3 do Gênese mostram o que acontece quando um camponês perde aquilo que é mais primordial para sua sobrevivência: a horta. “O sentido da palavra que traduzimos para jardim, em hebraico, é horta”, diz Rodrigues. Ao ser expulso do Éden e perdê-la, Adão comerá “o pão com o suor do rosto” e Eva sentirá aumentar “as dores do parto” porquê, em vez de ter filhos de 7 em 7 anos, como era o hábito, terá de engravidar mais vezes para o casal ter mais filhos e mão-de-obra. Trabalhando para os babilônios, eles precisavam produzir mais para pagar impostos.
A explicação de um mito que seria apenas sobre a criação e seus desdobramentos, acaba por se transformar em explicação para que as pessoas tenham de pagar impostos. É tudo culpa de Adão e Eva.
Representação de Adão e Eva
Os mitos do Gênese, por exemplo, foram escritos entre os séculos 8 e 5 a.C., mas a organização deles numa Torá (livro sagrado judaico) só começaria no século 2 a.C. Nessa época, é provável que o texto tenha sofrido mudanças e adaptações, segundo os ideais do judaísmo nascente. A própria escolha dos textos também obedece os critérios da religião que o organiza, como aconteceria com o Novo Testamento, no início do cristianismo.
Pergaminho da Torá (Livro Sagrado Judaico)
Mesmo fora dos livros sagrados, as tradições e interpretações dos mitos de criação fundamentam valores, regras morais e de comportamento para seus seguidores. “Há textos rabínicos que interpretam cada linha do Gênese para mostrar que a mulher não pode dar testemunho em público. Porque, quando ela tomou alguma decisão, levou o homem ao erro e ao pecado. A partir daí aparece toda a questão da sujeição da mulher”, diz Rodrigues. É tudo culpa de Eva.
Mas não é só na cultura hebraica que há essa manipulação acerca da história da criação. Qualquer sociedade antiga tinha como meta doutrinar seu povo para explicar o que aconteceu desde o início.
A cosmologia do hinduísmo também explica, além da origem do mundo, sua organização social. Segundo os Vedas, 3 divindades são responsáveis pelos ciclos de criação e destruição do Universo: Brahma cria, Vishnu preserva e Shiva o destrói para que o ciclo recomece. Para criar o mundo e os humanos, Brahma fez dois deuses de si: Gayatri e Purusha, o homem cósmico de onde foram feitas todas as coisas. Mas, enquanto alguns homens nasceram da boca de Purusha, e se tornaram sacerdotes, outros nasceram dos pés, e se tornaram os escravos da sociedade indiana.
Representação Hindu
O exemplo da sociedade hindu é apenas mais um exemplo de como os mitos sobre a criação do Universo fazem bem mais que resolver questões existenciais ao estabelecer relações de poder e detalhar códigos de conduta. O que faz deles ferramentas importantes para a coesão social, como parte indispensável da cultura e da identidade de um povo.
Boa parte do texto acima foi originalmente publicado pela Revista Superinteressante com a inclusão de algumas explicações realizadas pelo Blog.
Também podemos verificar alguns outros mitos desenvolvidos por outras sociedades antigas acerca do início da vida e do universo.
Mitologia Grega:
“Antes de serem criados o mar, a terra e o céu, todas as coisas apresentavam um aspecto que se dava o nome de Caos – uma informa e confusa massa, na qual estavam latentes as sementes de todas as coisas. A terra, o mar e o ar estavam todos misturados, sem suas características de solido, liquido ou transparente. Deus e a Natureza interferiram nessa discórdia, colocando ordem nas coisas.
A terra e o mar se separaram e ambos foram separados do céu. A parte ígnea, que era a mais leve, foi colocada no firmamento, o ar ficou em seguida, em relação ao peso e lugar. A terra, sendo mais pesada, ficou mais abaixo e a água ocupou o ponto mais inferior, fazendo a terra flutuar.
Nesse momento, um deus não identificado, colocou as coisas Mem ordem na terra, determinando aos rios e lagos os lugares que ocupariam, levantou montanhas, cavou vales, espalhou bosques, fontes campos férteis e planícies árida. Ordenou aos peixes que tomassem posse do mar, às aves , do ar e aos quadrúpedes, que dominassem a terra.
Após essa ordenação, tornou-se necessário a criação de um ser superior aos demais, e assim foi criado o homem. Não foi dito se o criador do homem utilizou materiais divinos, ou se na terra, recentemente separada dos demais elementos havia sementes celestiais ocultas.
Prometeu, que era Titã, uma raça que habitou a terra antes do homem, foi indicado para essa criação e, tomando um pouco de terra e misturando com água, criou o homem á semelhança dos deuses, dando-lhe uma postura ereta, de modo que enquanto os outros animais têm o rosto voltado para a terra, o homem levanta a cabeça para o céu e olha as estrelas.
Prometeu e seu irmão Epimeteu ficaram encarregados da criação do homem e dos demais animais e garantir-lhes as condições necessárias à sua sobrevivência. Dessa forma, Epimeteu deu a uns asas, a outros velocidade e a outros couraças de proteção, porém, quando chegou a vez do homem, os recursos tinham sido usados nos demais seres.
Epimeteu com a ajuda de seu irmão Prometeu, pediu à Minerva (deusa da sabedoria) que os auxiliasse a concluir a criação do homem e Minerva concedeu-lhes o domínio sobre o fogo e este foi dado ao homem, o que fez com que este tivesse superioridade sobre as demais criaturas.”
Fonte:
Bulfinch, Thomas, O livro de ouro da mitologia: (a idade da fábula): histórias de deuses e heróis – 9ª edição – Rio de Janeiro – Ediouro – 2000.
Mitologia Nórdica:
No início dos tempos, não existia nada além do Ginnungagap. Nem areia, mar, céu ou terra, haviam sido criados. Depois de muito tempo, um novo reino ao sul emanou, um reino chamado Muspellheimr, feito de fogo, brasas ardentes e calor abrasador. No norte uma segunda região, chamada Niflheimr, surgiu, e que consistia de ventos amargos, gelo e neve.
Ginnungagap ficava entre estes dois reinos, e as águas dos onze rios da fonte Hvergelmir ali fluíam. No meio do vácuo tudo era moderado, até um dia em que os elementos de fogo e gelo colidiram, ao norte a brisa fria de Niflheimr começou a congelar o vácuo, enquanto a parte meridional foi degelada pelo calor que emanava de Muspellheimr.
Tudo era desordem. Mas das gotas deste grande caos, a vida emergiu, na forma de um gigante de gelo. Seu nome era Ymir e os gigantes de gelo são seus descendentes. Certa vez, enquanto Ymir estava adormecido, o primeiro homem e mulher nasceram do suor da sua axila esquerda, e suas pernas deram à luz a um filho. Enquanto isso, o gelo em Ginnungagap continuava derretendo, até que a vaca Auðumla (Audumla) emergiu. Esta alimentou o gigante Ymir com suas quatro tetas e se sustentou lambendo seu gelo.
Quando Auðumla passou três noites sucessivas lambendo os blocos de gelo salgado, outro ser apareceu, seu nome era Buri, e seu filho Bor casou com Bestla, e desta união surgiram Vé, Vili e Óðinn (Odin), os primeiros deuses (os dois primeiros são provavelmente correspondentes a Hænir e Loki, respectivamente).
Os filhos de Bor sentiam um ódio tremendo pelo gigante Ymir, e então engendraram sua morte. Os três irmãos tomaram o cadáver de Ymir e o levaram ao centro de Ginnungagap e o cortaram em vários pedaços. Com o descomunal corpo do gigante, Vé, Vili e Óðinn criaram o mundo, de sua carne fizeram a terra, e dos ossos as montanhas.
Das partes esqueléticas quebradas de Ymir, dentes, e dedões dos pés criaram rochas, pedregulhos e pedras. O sangue que fluía de Ymir deu lugar aos rios, lagos, e mar. Larvas cresceram da carcaça de Ymir, e estas foram amoldadas em anões. Vé, Vili e Óðinn ergueram o crânio de Ymir tão alto que este alcançou o fim dos limites da terra, isto eles chamaram de céu, e para sustentá-lo sobre a terra, os filhos de Bor colocaram quatro anões, Norðri (Nordri), Suðri (Sudri), Austri, e Vestri , um em cada um dos quatro quadrantes, ou seja, correspondem respectivamente aos quatro pontos cardeais, Norte, Sul, Oeste e Leste.
Os três irmãos arrebataram brasas ardentes do reino de Muspellheimr e formaram o sol, a lua, e as estrelas. Estes globos foram colocados sobre o mundo para iluminar a terra e para algumas estrelas foram determinados pontos fixos no céu, enquanto para outras foi dada permissão para dançarem livremente. Vé, Vili e Óðinn criaram o mundo em forma esférica, e um corpo de água cercou a terra. Eles designaram a parte do mundo, chamada Jötunheimr, para a raça conhecida como os gigantes de gelo e pedra. Devido à maldade dos gigantes sobre os humanos, os irmãos levaram as sobrancelhas de Ymir para formar um muro protetor ao redor do centro da terra. Isto abrigou a área que foi chamada Miðgarðr (Midgard), e que abrigaria os humanos.
O cérebro de Ymir foi arremessado aos céus, pelos três deuses e com eles formaram as nuvens. Um dia, enquanto os filhos de Bor caminhavam por Miðgarðr, apreciando sua criação, perceberam que algo faltava, ao encontrarem dois troncos de árvore caídos, um de Freixo e o outro de Olmo, Óðinn criou o primeiro homem e mulher e lhes deu a essência da vida, Vili lhes deu raciocínio e sentimentos, enquanto Vé lhes deu a habilidade para ouvir, falar e ver. Seus nomes eram Askr e Embla. Vé, Vili e Óðinn ainda criaram os meios para medir e gravar o tempo, as fases claras e escuras da terra que eram governadas pela deusa Nott (noite) e por seu amante Dag (dia).
Óðinn fixou-os nos céus em carruagens que circulam o mundo todo a cada dois meio dias. A carruagem de Nott é puxada por um cavalo de nome Hrimfaxi e a carruagem de Dag por uma égua de nome Skinfaxi. Um homem teve um filho ao qual deu o nome de Máni e uma filha à qual deu o nome de Roðull (Rodull). Dizia-se que os dois irmãos possuíam uma beleza radiante. Óðinn então arrebatou Máni e Roðull, e colocou-os nos céus para guiar o primeiro a lua e a segunda o sol, pois são os significados de seus nomes. Eles dirigiam carruagens, e seus cavalos eram chamados Arvak (crina radiante) e Alsvid (o poderoso e jovem marchador).
Máni segue a lua ao redor e decide suas fases. Roðull é perseguida por um lobo de nome Skoll, enquanto um lobo de nome Hati Hrodnitnisson corre à frente dela tentando pegar Máni. Máni e Roðull serão devorados pelos lobos, momentos antes do Ragnarök. ”
Mito retirado das Eddas, poemas escandinavos antigos que relatam a criação do universo e a aventura dos deuses nórdicos.