Um ponto-chave no desenrolar da trama de “Negação” (Denial – 2016), em exibição na HBO e HBO GO, é quase um anticlímax. O juiz do caso pergunta ao personagem Richard Rampaton (Tom Wilkinson), advogado de defesa da ré Deborah Lipstadt (Rachel Weiss) se poderia o historiador e negacionista David Irving (Timothy Spall) ser um negacionista honestamente antissemita que acredita naquilo que diz. A resposta do advogado é de que algo do tipo: sim, poderia, mas no caso em questão ele mente deliberadamente, mesmo sabendo que aquilo está bem longe da realidade somente para que haja uma reafirmação de suas convicções absurdas.
Este é um ponto nevrálgico do filme de Mick Jackson: estamos diante de um julgamento que poderia ser considerado surreal por muitos, mas que acaba por acontecer porque o historiador e biógrafo de Hitler moveu uma ação contra a também historiadora americana pelo fato de ela afirmar em livros e palestras suas que o homem é um negacionista do Holocausto, algo que teria feito o primeiro perder oportunidades profissionais em sua carreira.
Portanto, partimos do ponto de vista do acusador, pois ele está afirmando coisas extremamente odientas, mas acaba por tentar provar que tinha o direito dessa liberdade de expressão.
Posteriormente a isso, nos focamos na defesa de Deborah que, inicialmente, queria depor e colocar sobreviventes do Holocausto para dar seu testemunho e acabar com a premissa que David defende, pois este salienta de que não há provas de que milhões e milhões de pessoas teriam morrido durante a segunda guerra mundial nos campos de concentração.
Uma boa parte do filme é consumida por conversas da equipe de defesa de Deborah que teve de se sujeitar a participar do julgamento como ré na Inglaterra, já que a solicitação do inglês partiu de lá quando um dos livros de Deborah foi lançado em solo britânico. Mas também percebe-se no caminhar do filme que os advogados preferem que não haja embate direto nem da americana com o negacionista nem de judeus com ele.
Fica aparente no primeiro instante que se trata de uma análise fria deles, mas comprova-se posteriormente que sua estratégia tinha não só o viés de ganhar a ação, mas também de não expor Deborah e, principalmente os judeus sobreviventes às piadas antissemitas de David.
Todo o trajeto inicial da defesa, porém, parece que vai ser jogado por terra, quando a pergunta lá do início do texto é feita pelo juiz ao principal advogado de defesa.
Aqui é que entra a comparação com o momento atual vivido por nós no Brasil.
Se numa sociedade como a europeia que viveu tempos terríveis como o fascismo, o nazismo e as duas grandes guerras do início até a metade do século passado e que depois teve ação exemplar para lutar contra esse tipo de pensamento em seus cidadãos que vieram depois ainda vive com arroubos de loucura como a que suscitou essa briga judicial em que um piadista politicamente incorreto que adorava falar mal de negros, subjugar o papel das mulheres nos meios sociais e tem desprezo pela ciência da qual ele mesmo vive o que dirá, portanto, do país que não promoveu ruptura nenhuma com seu passado terrível de tempos de ditadura?
Veja bem, vivemos durante 21 anos um período em que pessoas foram torturadas, perseguidas, mortas e escondidos seus corpos e a transição para a volta democrática ocorreu do modo mais pacífico e silencioso possível depois que as forças militares engendraram acordos para que a anistia fosse realizada sem nenhum critério jurídico passível de punição.
Isso fez com que não houvesse debate em torno do julgamento de gente que se envolveu com atividades escusas e que não teve seus nomes colocados em análise tanto pelo crivo popular, quanto pelo crivo jurídico e midiático. Saíram literalmente do governo para que voltassem tranquilamente para suas casas viver da aposentadoria. Até hoje há pessoas desaparecidas que não puderam sequer ser enterradas pela família.
Com tal processo de mudança sem nenhum impacto crítico na mudança de governo da ditadura para a volta do povo ao poder só bastaram algumas primaveras para que se ouvissem aqui e ali um “na ditadura que era bom”, “naquele tempo não havia inflação”, “na ditadura sim que havia segurança”.
Lembre-se que isso não se dá somente pela distância histórica, mas também pela falta de debate sobre aqueles anos de chumbo. Isso fez com que aproveitadores e espertalhões se apossassem do tal discurso do “antes que era bom” para aproveitar esse nicho descontente com “tudo o que está aí”.
Bolsonaro, o candidato líder das pesquisas e favorito a ganhar o pleito domingo que vem, cansou de utilizar esse discurso em programas televisivos e foi eleito várias vezes para a Câmara Federal simplesmente por repetir sua baboseira pró-militarismo durante anos. Conforme o tempo foi passando incluiu também na sua fala jocosa elementos de preconceito, antissemitismo e discriminação contra as mulheres, os negros e a comunidade LGBT.
Quando sua popularidade atingiu um nível nacional gritante e sua capacidade de discutir ideias para o Brasil foi afrontada ele se viu na necessidade de atirar em novos alvos: notadamente o PT, a corrupção e a insegurança pública.
Não haveria nenhum problema se realmente seu discurso tivesse tido um acréscimo de criticidade e pudesse falar contra problemas reais da roubalheira de parte do governo petista e da violência que assola o país. A questão neste ponto é que nunca se quis fazer uma análise profunda acerca dessas situações: o que ele sempre quis foi causar, como aquela pessoa chata que sempre é do contra, mas nunca dá solução.
E se ainda assim tivesse ficado nisso só sua mitologia, meio que para se autoafirmar recrudesceu mais ainda o foco em inimigos imaginários e principalmente na necessidade de vestir uma carapuça de fiscal dos direitos alheios e elegeu todas as minorias como antagonistas da nação. E é neste ponto que ficou deveras perigoso até para um lugar tão conservador quanto o Brasil.
Se já tínhamos um nível de violência gigante contra minorias nesta parte do globo foi nos últimos meses que o negócio descambou para a agressão gratuita mais pesada e física, e nas últimas semanas para assassinatos com requintes cruéis de antissemitismo e discriminação. Mulheres, pessoas ligadas a movimentos sociais, negros, gays, lésbicas, trans e até líderes religiosos (que não aceitam a bandeira de extrema direita) estão sendo atacados à luz do dia e a polícia e a justiça parecem fazer vista grossa.
A eleição nem ocorreu, a vitória do candidato que defende tais ideias também não aconteceu, mas já se percebe que seus seguidores babam atrás de sangue derramado de qualquer um que eles julguem seus adversários.
É importante que se diga que num momento assim é necessário a união de quem não compactua com tais práticas e ideologia semelhante e que qualquer governo democrático (de qualquer esfera ou espectro político) é mais indicado do que o fascismo institucionalizado como o deseja essa turma. Sendo assim, ainda há margem para um virada.
Porém, a barbárie de uma parcela significativa da população nacional já foi identificada e teremos que saber conviver e desenvolver meios de lutar contra ela mesmo que tal vitória da democracia ainda ocorra domingo.
No filme (e na vida real) que provocou a escrita deste artigo o final é coerente com a luta que a Europa teve contra as forças maléficas do nazismo e fascismo e Deborah Lipstadt ganha a ação conta David Irving o jogando ao ostracismo, que é onde pessoas que defendem o indefensável deveriam estar sempre. Mas e aqui, o que vamos fazer a respeito?